Filme 'embranquecerá' Cleópatra? Como era uma das mulheres mais poderosas da história antiga

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Postado em: 16 / 10 / 2020 [08:25 am]

 
 
Eternizada no imaginário popular com a pele branca e os olhos azuis da atriz britânica Elizabeth Taylor, a rainha Cleópatra 7ª suscita debates há séculos em torno de sua astúcia política, sua beleza, sua identidade e seu legado à frente do Egito.
 
As disputas em torno dela ganharam novo impulso nesta semana com a divulgação de que a monarca do Egito será vivida no cinema pela atriz israelense Gal Gadot, conhecida por seu papel de Mulher-Maravilha.
 
"Nós esperamos que mulheres e garotas ao redor do mundo que aspirem contar suas histórias nunca desistam de seus sonhos. Nós vamos fazer suas vozes serem ouvidas, por e para outras mulheres", disse Gadot, ao anunciar a produção em seu perfil no Instagram, com 43,7 milhões de seguidores. O longa, ainda sem previsão de estreia, será dirigido por Patty Jenkins, diretora de Mulher-Maravilha.
 
Se de um lado muitos comemoraram uma produção majoritariamente feminina que deve evitar clichês de mulher sedutora de filmes anteriores, de outro, muitos criticaram a escolha da atriz para o papel sob acusações de embranquecimento (whitewashing) da figura histórica, descendente de uma dinastia grega ligada ao rei macedônio Alexandre, o Grande, mas que provavelmente era de etnia mista. Cobravam a escalação de uma atriz de origem africana ou árabe.
 
Mas qual é a verdadeira origem e história da última governante da dinastia ptolomaica, que comandou o Egito de 51 a.C. até 30 a.C., trouxe prosperidade e paz a um país falido e soube tirar proveito político da aproximação de dois generais romanos?
 
Para a historiadora britânica Mary Beard, as milhares de representações de Cleópatra ao longo do tempo são "baseadas em uma série perigosa de deduções de evidências fragmentárias ou flagrantemente não confiáveis".
 
Sabe-se tão pouco sobre ela que Beard defende que Cleópatra deveria aparecer para nós hoje como "a rainha sem rosto".
 
Origem e linhagem
Cleópatra nasceu em torno do ano de 69 a.C. no Egito. Seu nome, de origem grega, significa "grande como o pai".
 
Seu pai, o faraó Ptolomeu 12, pertencia a uma linha de monarcas da dinastia ptolomaica, que teve suas raízes no ano de 332 a.C.. Naquele ano, Alexandre, o Grande, liderou tropas macedônias e gregas numa batalha que libertou os egípcios do domínio dos persas.
 
Alexandria passou a ser a nova capital do Egito. A cidade se tornou "a capital das palavras helenísticas da palavra grega, onde ficavam os livros de escritores muito importantes do passado. E vemos como a nova cultura grega meio que vai junto com a antiga tradição religiosa egípcia, que já existia havia 3.000 anos", explica o egiptólogo Christian Greco, do Museu Egípcio de Turim, na Itália.
 
Quando Alexandre, o Grande, morreu em 323 a.C., seu reino foi dividido. É aí que a posição de governante do Egito foi reivindicada por Ptolomeu 1º, filho de um nobre da Macedônia que dá início à dinastia ptolomaica.
 
A partir dali, o Egito seria governado por seus descendentes até a morte de Cleópatra 7ª, no ano de 30 a.C, mais de 300 anos depois. O Egito se tornaria um dos reinados mais poderosos do mundo, e um dos últimos a serem dominados pelos romanos.
 
Essa mistura de povos e locais, associada à falta de informações confiáveis sobre a dinastia ptolomaica e Cleópatra, alimenta debates há anos sobre a rainha do Egito.
 
Afinal, ela era norte-africana, grega ou macedônia? Tudo indica que ela era de origem étnica mista.
 
Segundo pesquisadores do Instituto Arqueológico Austríaco, análises da ossada de uma irmã de Cleópatra apontaram em 2009 que a rainha egípcia era, em parte, africana.
 
A conclusão foi tirada após a identificação do esqueleto da irmã mais nova de Cleópatra, a princesa Arsinoe, encontrado em uma tumba de mais de 2.000 anos em Éfeso, na Turquia. As evidências obtidas pelo estudo das dimensões do crânio de Arsinoe indicam que ela tinha algumas características de brancos europeus, antigos egípcios e africanos negros.
 
Mas há também outras questões de identidade envolvidas no debate sobre a origem de Cleópatra.
 
Segundo Maria Wyke, professora de latim da University College de Londres (UCL), há uma grande disputa para reivindicar Cleópatra enquanto egípcia.
 
"No século 19, havia um debate sobre se ela tinha sangue egípcio, em parte porque há tão pouca informação, se é que há alguma, sobre sua mãe ou sua avó. Mas no final do século 20, a questão não era se Cleópatra era egípcia no sentido genético, mas se ela era negra."
 
E continua: "isso emerge principalmente na década de 1990 com o surgimento do afrocentrismo tendo o Egito como ponto de partida. Assim, Cleópatra se tornou a personificação de uma mulher poderosa na origem da história africana. Portanto, reivindicar Cleópatra como negra tendo uma base histórica ou não é irrelevante. Reclamá-la como negra se torna um importante contra-ataque aos preconceitos de gênero e raça e à apropriação de Cleópatra feita pelo homem branco do mundo ocidental ao longo do tempo".
 
De acordo com Joyce Tyldesley, professora de egiptologia da Universidade de Manchester e autora de Cleópatra: A Última Rainha do Egito, a rainha egípcia "manipulou a religião egípcia para que fosse vista como uma encarnação viva da deusa Ísis, o que lhe permitiu consolidar completamente sua posição de poder".
 
E, para Tyldesley, essa manipulação da religião contém a chave para o grande mistério que a atormentou enquanto escrevia o livro sobre Cleópatra.
 
"Havia uma pergunta que me perseguia o tempo todo: será que Cleópatra se considerava egípcia? Acho que sim. Ela era uma rainha do Egito. O que mais ela teria se considerado? Seu pai era um rei do Egito, uma de suas irmãs tinha sido rainha. Acho que ela teria se considerado uma egípcia, ainda que não fosse uma egípcia nativa, mas uma egípcia grega."
 
Segundo ela, conforme os gregos se estabeleceram no Egito, havia duas populações vivendo lado a lado, e ambas começando a se familiarizar com a cultura uma da outra.
 
"Acima de tudo, Cleópatra estava começando a usar a cultura egípcia, especialmente em termos de religião. Outros Ptolomeus já haviam feito algo semelhante antes, em menor grau, mas é muito interessante que ela use uma base egípcia para se promover."
 
Além das apropriações próprias e alheias em torno da identidade dela, há tentativas científicas de reconstituir os verdadeiros traços de Cleópatra, que lhe deram um rosto — dissociado do imaginário popular eternizado pela cultura ocidental.
 
Em 2009, a arqueóloga e egiptóloga britânica Sally Ann Ashton utilizou imagens gravadas em artefatos antigos, como um anel que data da época do seu reinado, para compor o rosto da rainha egípcia.
 
O rosto recriado pela egiptóloga aponta uma mulher de etnia mista, com traços egípcios e da sua herança grega.
 
Fonte: G1