Escambo Artístico: Sim ou Não?
O Guia do Ator resolveu colocar o dedo na ferida e entender todos os lados de um grande debate entre os atores e atrizes: o escambo artístico
Algo cada vez mais presente no universo dos atores é o escambo artístico. Como o nome diz, isso acontece quando um artista realiza algum trabalho por meio de permuta, isto é, atua em troca de outro tipo de pagamento que não seja dinheiro (como por exemplo material editado para portfólio, alimentação, transporte, entre outros). Esta prática tem ficado extremamente popular, principalmente por conta de projetos universitários, (como TCCs), que necessitam dos atores, mas são totalmente produzidos por alunos. Graças ao aumento exponencial dessa realidade, os comentários e discussões na comunidade artística a este respeito também tiveram amplitude. Basta passar apenas alguns minutos visitando grupos na rede social Facebook voltados exclusivamente para atores, para encontrar diversas vagas que não oferecem cachê e, por conseguinte, as opiniões dos artistas. Entretanto, é aqui que reside a polêmica; enquanto alguns se recusam terminantemente a realizar esta forma de trabalho, outros não veem problema na prática. O Guia do Ator, então, foi conversar com os próprios envolvidos para entender todos lados da questão e ouvir seus argumentos. Confira!
Observação: Todos os atores indicados com um * ao lado pediram para ter sua identidade preservada e estão sob pseudônimo. Qualquer semelhança com a realidade (caso de homônimos) é mera coincidência.
Não peça para fazer de graça a única coisa que posso cobrar!
“Todo profissional, independente da área, deve ser pago, pois é o seu trabalho!”. Esta é a opinião de Marcus Taretto, 21 anos, ator, diretor e dramaturgo. Segundo ele, os alunos que necessitam dos atores até podem continuar oferecendo vagas assim, desde que o ator em questão seja um amigo ou estudante de teatro. “Discordo de virar para um ator profissional, já no mercado, e dar a desculpa de que é pro seu ‘portfólio’. Seria o mesmo que chegar para um jogador de futebol e falar: olha você joga um tempo no meu clube para ter visibilidade no mercado lá fora”, explicou seu ponto de vista.
Maria Albuquerque*, atriz de 28 anos, concorda com Taretto. “Acho que esses trabalhos não remunerados podem até ser interessantes para estudantes de teatro, não para atores já formados e que vivem disso”, afirmou. Albuquerque contou também que, muitas vezes, os castings feitos pelos produtores dos projetos universitários ultrapassam o limite de requisições. “Muitas vezes nem um trabalho remunerado exige tanto!”, comparou.
Para José Helu, 36 anos, ator profissional, este tipo de atitude é desrespeitosa para com os profissionais da área. “Os atores também já foram estudantes e tiveram gastos com cursos. Ninguém pensa em estudar para trabalhar de graça. Ator não é cobaia de estudantes”, apontou. E completou “ator acima de tudo é um profissional, um ser digno de ser remunerado. Nada para ator é de graça, a vida de ator no Brasil é uma luta diária”.
Natalia Antunes, 26 anos, atriz profissional, tem a mesma visão de Helu. “Hoje em dia, os não formados dificilmente conseguem um emprego/trabalho digno. É preciso investimento financeiro (que, diga-se de passagem, normalmente não é baixo) para que o então estudante faça uma faculdade ou um curso técnico. Portanto acredito que, após tanto gasto, o mínimo que merecemos é um cachê pelo nosso trabalho, e não apenas uma ajuda de custo”, alegou. Antunes ilustrou sua opinião em relação ao escambo artístico da seguinte forma: “Se eu chegar no supermercado e pedir pra pagar a conta com um poema de Shakespeare, eles aceitariam minha permuta?”.
“Acho que se os projetos são um exercício do mais próximo da realidade que os alunos de cinema e audiovisual podem chegar, nada mais justo que eles procurem ser o mais profissionais possível”. Estas aspas pertencem a Luciana Koeppel, atriz profissional de 39 anos. Koeppel explicou que, como estes trabalhos costumam ir para festivais da área cinematográfica, muitas vezes o ator acaba nem recebendo o prometido material para portfólio tão cedo. Segundo ela, isso ocorre porque “se vazar o filme pode prejudicar a participação dele nos concursos. Até nisso os atores saem perdendo”. Atriz também nos contou que, certa vez, participou de um filme universitário em que não seria pago o cachê e a equipe perdeu o material, jamais finalizando a produção. “Para eles, acho que os atores não contavam muito por irem de favor. Eles nem se preocuparam em avisar, só vim a saber depois de encontrar um dos realizadores, pois todos acabaram sumindo”, narrou. E completou: “por isso acho que o ator tem que se dar o valor e mostrar isso sempre para o aluno que está chamando-o para trabalhar”.
Para Beatriz Marques*, 26 anos, atriz, bailarina e publicitária, o problema da desvalorização começa na cultura do brasileiro. “Muita gente ainda acha que ‘ser ator’ é um hobby, ou são pessoas ricas. Não encaram como uma profissão”, esclareceu. Contou que os atores profissionais que se submetem a este tipo de trabalho contribuem para a depreciação da profissão. “Para quem está começando é ótimo, pois nenhum começo é fácil, mas para quem está na área há anos, não compensa. Se todos se negassem a trabalhar de graça, com certeza a politica mudaria”, garantiu.
A maior parte dos atores possui esta opinião de que os trabalhos sem cachê desrespeitam os profissionais que investiram tempo e dinheiro em sua formação. Mas então, o que leva um artista a realizar este tipo de prática? “O que leva um ator a trabalhar de graça, na maioria das vezes, é desespero de querer preencher currículo”, expõe Helu. Já para Albuquerque, eles aceitam para obter “visibilidade, contatos e material de trabalho”. Marques concorda com Albuquerque, e acrescenta que “um ator [novato] ganha experiência ao fazer esse tipo de trabalho, principalmente conhecer os bastidores e toda técnica de interpretação”. Koeppel enxerga a situação de várias formas. Para ela, fora as razões já mencionadas, alguns atores podem ver isso como uma alavanca em sua carreira. “É apenas mais uma porta pra se projetar mais facilmente através dos festivais e programas de curtas e assim, quem sabe, serem descobertos por algum diretor ou produtor e com isso vir assim a ganhar a tão sonhada fama”, propôs.
Como visto em alguns depoimentos, todos os entrevistados concordam em um ponto: que para os estudantes de artes cênicas esta forma de trabalho é aceitável para adquirirem experiência. “Todo conhecimento é válido, mas ainda acho que é possível se ganhar cachê junto com a experiência”, disse Taretto. Segundo ele, existem outras formas de se compensar os atores. “Sou proprietário de uma cia. de teatro, e estamos investindo em curtas. Para isso, pego atores novos, que ainda estão em formação. Caso se saiam bem, eles começam a trabalhar em projetos maiores, como peças. Ofereço assim uma forma de participar de uma cia profissional enquanto estão estudando”, explicou. Antunes rebate que, em relação à experiência, “figurações ou pontas ajudariam da mesma forma e dariam um cachê bacana”.
O voluntariado leva à experiência
Apesar de todos os argumentos expostos acima, alguns atores são a favor dos curtas universitários não oferecerem cachê e não se sentem abusados por realiza-los. “Acho muito válido quando se está no começo da carreira, que é muito difícil. Ou em casos onde o ator veja no projeto uma possível visibilidade e um lucro futuro”, contou Caio Coppoli, 20 anos, ator, diretor e iluminador. Mas alertou: “que não se torne um hábito. Se não, posteriormente, você será tratado como ‘o cara que faz de graça’, um ponto negativo difícil de ser mudado. Fica difícil de impor seu valor no mercado”.
“Para um trabalho remunerado, a empresa tem que ter uma estabilidade. Em um projeto universitário, as pessoas estão começando a sua carreira na arte, em busca de reconhecimento. O cachê não é oferecido, porque não tem como arcar tudo do seu próprio bolso”, explicou Edrigo Fox, 33 anos, estudante de teatro. Para ele, fazer trabalhos universitários é uma via de mão dupla. “A intenção é a de ajudar a carreira de novos roteiristas, novos cineastas. Um ator em início de carreira, além de ajudar um projeto, ajuda a si próprio a criar vínculos e oportunidade de projetos futuros”, comentou.
Bárbara Danielli, 22 anos, atriz e diretora, entende o lado dos estudantes. “Assim como eles, nós atores já começamos a carreira um dia e também utilizamos de colegas e amigos de profissão para realizar trabalhos da faculdade. Acho que o cachê oferecido realmente não deve ser comparado ao de um filme profissional”, expôs. Entretanto, acrescentou logo que é “a favor de ao menos existir transporte e alimentação”. Para ela, “curtas universitários, com cachê ou não, é um trabalho como qualquer outro, e gera sim aprendizado, como mais experiência diante das câmeras até para um trabalho profissional”. Segundo ela, trabalhos voluntários são mais dignos do que figuração. “Eu mesma já fiz muitos, como o Doutores da Alegria, por exemplo. Acho um trabalho maravilhoso e o retorno que esse projeto me dá não tem dinheiro que pague”, afirmou. Todavia, deixou claro que não há como sobreviver fazendo apenas trabalhos não remunerados. “Preciso também de retorno financeiro, já que tenho contas a pagar”, concluiu de forma divertida.
Juan Martyn, 45 anos, ator com mais de 20 anos de experiência, é um dos que acreditam fortemente no cachê simbólico. “É importante haver alguma remuneração, ainda que seja pouca”, elucidou. Entretanto, explicou que “em meu caso, gosto de atuar em vídeo e dificilmente rejeito uma oportunidade de exercer minha profissão. A recompensa é o resultado em vídeo e conhecer profissionais que vão te contratar em um futuro próximo”. Segundo ele, ex-alunos que ele trabalhou voluntariamente já o chamaram para três trabalhos profissionais bem remunerados. “Você colhe o que planta”, afirmou.
Para Eduardo Freitas, 52 anos, graduado em artes cênicas, fazer trabalhos voluntariamente é uma forma de exercer sua cidadania. “Atuo para projetos universitários não remunerados do mesmo modo como faço shows circenses ou dou aulas em projetos sociais de comunidades carentes. Me profissionalizei para ser devidamente pago por quem contrata meus serviços e é destas fontes que pago minhas contas”, ilustrou. Entretanto, levantou outro ponto. “Com a minha experiência, percebi que há outras questões a serem consideradas nestes trabalhos para universitários, muito mais importantes para a dignidade do ator do que ser pago ou não. A maioria destes estudantes é tão arrogante, que consideram o processo seletivo uma via de mão única”, contou. Nesses casos, afirmou que avalia participar ou não. “Nos casos em que a gente vê que eles podem pagar, mas não pagam, não vejo razão para o ator se prestar a isso. Simplesmente me recuso a atuar para eles pelo tal cachê simbólico”, esclareceu.
O ator David Carolla, 28 anos, concorda com Freitas. “Sempre busco ver a coerência do projeto como um todo. Existem universitários com poder aquisitivo diversificado, investindo de maneira diferente. Quando percebo que um projeto realmente tem baixo orçamento, não ligo em não receber cachê, desde que o projeto tenha uma validade para meu currículo, que seja para mim também um aprendizado e eu acredite na proposta do trabalho”, elucidou. De acordo com Carolla, algumas produções não tem o devido respeito com o elenco. Às vezes somos tratados como ‘gado’, sendo considerados a parte menos importante do trabalho. Acredito que deve haver, em primeiro ponto, respeito e dignidade no tratamento com os atores e profissionalismo nas relações de trabalho”, concluiu. Para ele, ter cachê ou não independe da qualidade do trabalho. “Já fiz projetos em que recebi cachê e a qualidade foi péssima, a equipe não trabalhava em conjunto, não cumpriam prazos e não tinham planejamento. Em contra partida, participei de trabalhos sem recebimento de cachê, mas pareciam produções extremamente profissionais, pela qualidade dos integrantes e pela proposta do trabalho, rendendo grande visibilidade”, relembrou.
Freitas ainda levanta outra questão: a autorização de imagem. “Em algumas autorizações, consta que estamos liberando o uso de nossa imagem para a Instituição de Ensino e esta poderá usar nossa imagem do modo como quiser, em qualquer tempo, inclusive para fins comerciais sem que o ator possa requerer qualquer direito”, contou. E afirmou: “Não atuo para instituições se tal cláusula não for modificada, ainda que aleguem que seja ‘só formalidade e nunca usarão sua imagem para outro fim’”.
O pilar da discórdia: os estudantes
Conversamos com dois estudantes universitários: Rafael Santos, que cursa Rádio e Televisão na Universidade Metodista, e André Morsi, que faz o curso Lanterna Mágica da Melies – Escola de Cinema, 3D e Animação, ambas em São Paulo.
Quando precisou de atores para realizar um curta universitário, Santos a princípio não tinha o cachê como um de seus planos. “No começo eu era contra este pagamento, pois somos estudantes, no meu caso de faculdade particular e de preço elevado, ou seja, não temos dinheiro mesmo. Sem falar que nosso trabalho raramente gera alguma remuneração, muito pelo contrário, na maioria das vezes só gera gastos”, explicou. Mas logo completou que “não estou contando transporte e alimentação, pois sempre achei obrigação da equipe providenciar”. Entretanto, hoje em dia o estudante não possui mais esta opinião. “É difícil encontrar alguém que tope fazer o trabalho gratuitamente, ainda que sejam estudantes. Fora que, devido à orientação de uma professora que eu tive, virei a favor do pagamento de um cachê sim, nem que seja simbólico”, comentou. A professora em questão mostrou aos alunos que, pagando-se uma remuneração em dinheiro, além de tornar a relação mais profissional, existe um maior comprometimento com o projeto por parte dos atores. “Geralmente, marcamos nossas gravações com mais de uma semana de antecedência, e nada impede que o ator com quem estamos contando encontre um trabalho mais interessante para ele, e isso o impeça de gravar conosco. Com o cachê é mais difícil desta pessoa desmarcar conosco”, afirmou.
André Morsi está realizando sua primeira produção de um curta metragem e, por enquanto, ainda não sabe se pagar o cachê será viável, apesar de achá-lo importante. “Nosso curta tem um orçamento bem limitado, não podemos nos dar o luxo de pegar grandes atores com cachês altíssimos. Temos que procurar exatamente as pessoas que estão com a mesma sede que nós, na busca de demonstrar seu potencial, seu trabalho, seu talento”, explicou. Mas tem a mesma opinião que Santos: “creio que um ator recebendo um cachê simbólico teria mais compromisso do que um ator que foi pra lá sem ajuda de nenhum custo. Isso ajuda na disposição, auto estima e na dedicação pelo projeto”. Entretanto, apesar de ter escrito na oportunidade que talvez não houvesse cachê, Morsi teve uma surpresa. “No mesmo dia que anunciei a busca pelo elenco, recebi quase 30 e-mails com materiais de atores e atrizes. Fiquei admirado pelo retorno”, relembrou.
Quando questionados sobre a orientação dos professores quando passam aos seus alunos trabalhos que precisam dos atores, ambos foram unânimes: os mestres dizem para que se dê ao menos o famoso cachê simbólico. “Muitos dos meus professores também são atores, por isso confio no que eles falam a esse respeito e comprei essa ideia para mim”, assegurou Santos. Morsi comentou que, no caso de o orçamento do filme não caber o cachê, apesar de não ser o ideal, os alunos devem conversar diretamente com os atores envolvidos. “Negocie, veja o que é mais adequado e bom para todos”, disse.
Quanto a colocarem-se na posição contrária, a de fazer seu trabalho voluntariamente, a opinião dos estudantes emparelha com a dos atores. “Depende de muitos fatores; a minha situação financeira, para quem é e qual o tipo de trabalho, se será uma escola para mim, etc... Se oferecer um grande portfólio, eu faria sim”, contou Santos. Mas acrescentou que “ser remunerado, mesmo que simbolicamente em casos acadêmicos, é sempre mais gostoso”. Morsi tem uma opinião parecida com a de Santos. “Como estou começando, não me daria o luxo de apenas trabalhar em produções remuneradas. Claro que não deixaria meu trabalho para isso, tenho que pagar minhas contas (risos). Mas se um amigo ou alguém que precise dissesse ‘André, temos um projeto e preciso de ajuda. Tem que estar às nove horas em determinado lugar, você topa?’. Estarei lá às oito!”, concluiu.
Por Jessica Orsini (em reportagem especial para o Guia do Ator)
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